Nesta época de férias aproveitamos para apresentar mais um documento em Destaque e uma sugestão de visita.
A igreja da Misericórdia de Barcelos restaurada em 2019 é um dos locais emblemáticos de Barcelos. O seu altar-mor com o seu retábulo em escada dá-nos a sensação de nos conduzir ao divino. Conheçamos um pouco da sua história.
Em 1617, o seu douramento foi contratado com o dourador Salvador Mendes de Faria, morador em Lisboa, na freguesia do Espírito Santo. Esta obra deveria ser idêntica à do retábulo-mor da Sé do Porto e, caso Salvador Mendes não pudesse assumir este cargo, passaria a ser da responsabilidade de André Peres. No documento que agora apresentamos, indica-se que este último era «companheiro» do pintor Simão Rodrigues, a quem os confrades confiaram a pintura do retábulo e que o mesmo Simão Rodrigues fora o pintor encarregue do retábulo-mor da Sé do Porto.
No século XVII, a criação de um retábulo era um processo complexo e colaborativo que privilegiava a opulência e a dramaticidade. Conhecidos pela intensa utilização da talha dourada (entalhe em madeira revestido a ouro), os retábulos desse período eram obras de arte totais, combinando arquitetura, escultura e pintura.
O contrato que agora damos a conhecer faz parte de uma última etapa de todo um trabalho de equipa que passava por: entalhadores (também chamados de "mestres de talha") assumiam a tarefa de esculpir os ornamentos. O século XVII, especialmente a partir da segunda metade, viu um aumento significativo no uso de talha e do douramento.
Após a estrutura estar montada e a talha esculpida, a madeira passava por um processo crucial de preparação, conhecido como aparelho, seguindo-se o douramento (A Aplicação do Ouro).
Era esta etapa que conferia ao retábulo a sua característica mais marcante: o esplendor do ouro. Os douradores aplicavam folhas de ouro extremamente finas sobre o bolo. Esta técnica exigia grande precisão e habilidade Policromia e "Estofado".
Nem todas as partes do retábulo eram douradas. As esculturas e algumas áreas decorativas eram frequentemente policromadas, ou seja, pintadas com cores vibrantes para dar maior realismo às figuras. Uma técnica muito utilizada no século XVII, especialmente na decoração de vestes de santos e figuras, era o estofado.
A seguir, detalhamos as etapas e os profissionais envolvidos na construção de um retábulo no século XVII, através da transcrição do termo do contrato do retábulo do altar-mor da Santa Casa da Misericórdia de Barcelos, atribuído a Salvador Mendes de Faria, da cidade de Lisboa, na freguesia do Espírito Santo, no valor de duzentos mil réis, até dia da Visitação de Santa Isabel do ano de 1617.
Atualmente, o retábulo de Barcelos assim como o da Sé do Porto já não apresentam as intervenções do século XVII, pois ao longo dos séculos as decorações iam sendo alteradas conforme o gosto de cada época. Mas aqui deixamos a transcrição do documento que comprova esta intervenção longínqua. E, já agora, aproveitem para visitar a Igreja da Santa Casa da Misericórdia de Barcelos e o Núcleo Museológico, onde poderão ver este e tantos outros documentos em exposição.
1617-11-09
Termo do contrato do retábulo do altar-mor da Santa Casa da Misericórdia de Barcelos
Comtrato do retábulo
[fl. 32r]
Nós o provedor e irmaos da Casa da Santa Mizericordia desta villa de Barcellos abaixo assinados nos obrigamos por este pelo escrivão da meza feito e por todos assinado de dar dozemtos mil reis de dinheiro de comtado a Salvador Mendez de Faria morador na cidade de Lisboa ao Espírito Santo com tamto que nos de dourado estofado e pimtado o retábulo do altar mor desta dita Casa da Misericordia ate dia da Vizitação de Santa Isabel do ano que vem de seiscemtos e dezoito e o dourado e estofado do dito retábulo sera comforme ao do retábulo da capella mor da cidade do Porto e ser apimtado por Simao Rodriguez morador na cidade de Lisboa que pimtou o dito retábulo da Sé e não podemdo elle vir sera por Amdre Pires companheiro do dito Simao Rodriguez. E nos obrigamos a lhe não remover nem tirar [fl. 32v] a obrigação de pimtar dourar e estofar o dito retábulo pello dar a outros ofeciais amtes daqui por diante lhe avemos per dada a dita obra e isto com comdiçao que demtro de hum mês da feitura desta entrega procuração do dito Simao Rodriguez ou seu companheiro digo de seu companheiro Amdre Pirez pera comforme a isso se fazer escritura pubriqua com as obrigações necessárias e as segimtes comvem a saber lhe daremos logo sesemta mil reis em dinheiro de comtado per todo o mês de novembro prezente e os coremta reis que faltao pera semto per todo janeiro e pella Pascoa de frores sem cruzados e os sesemta mil reis que faltao pera per emcher a copia dos duzemtos mil reis. Lhe daremos dia de Samta Isabel do mesmo ano de seiscemtos e dezoito e não acabamdo elle Salvador Mendez de Faria o dito retábulo no dito dia atras declarado lhe não daremos mais que semto e oitemta mil reis e se revora e fara com todas as mais clauzullas e consisois com que o bispo do Porto lhe deu o seu retabolo comforme a escritura de obrigação que dito se fez com elle Salvador [fl. 33r] Mendez e pro verdade se mandou fazer este termo de comtrato que o dito Salvador Mendez de Faria se obrigou a comprir per sua pessoa e bens e sendo necessário disse que dava fiansa chã e abonada estando a todo presente a Andre Cavallo da Silveira e o licenciado Jeronimo Coelho e Ambrozio Pereira todos moradores nesta villa que todos aqui asinarao com o provedor e mais irmaos. Feito em meza aos nove dias do mês de novembro de mil e seiscentos e dezassete ano ut supra. E eu Gaspar de Mariz Mattos escrivão da Caza que o escrevi.
[Assinaturas:]
GASPAR DE MARIZ
PROVEDOR FRANCISCO DE MARIZ FARIA
GASPAR VAZ VILAS BOAS
SALVADOR MENDES
ANDRE CAVALLO DA SILVEIRA
DOMINGOS LOPES
AMBROSIO PEREIRA
ANTONIO
FRANCISCO CARVALHO DA COSTA
[Texto: Alexandra Vidal]
SCM Barcelos, 13 AGOSTO 2025