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Os Tombos da Gafaria da Misericórdia de Barcelos e os seus 523 anos

Durante décadas, a data da fundação da Santa Casa da Misericórdia de Barcelos oscilou entre os anos 1500 e 1520, não havendo consenso entre os investigadores. Na falta de uma prova documental precisa, a data que acolheu, até hoje, uma maior aceitação é 12 de maio de 1520, data do alvará régio de D. Manuel I a ordenar a fusão da Gafaria e Hospital existentes em Barcelos na Santa Casa da Misericórdia desta então ilustre vila.

Nos últimos dois anos, com uma aposta crescente na área da Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Barcelos, tem sido feito o tratamento e descrição arquivística do seu arquivo histórico, agora denominado Arquivo Leonor, que levou a avanços científicos em termos de dados históricos.

Um dos estudos realizados, que está a ser preparado para publicação, é o dos Tombos da Gafaria de Barcelos. Os quatro tombos estão compilados num único volume, com datas entre 1464 e 1499, e é precisamente o quarto tombo, com data de 1499, que nos diz no seu título:

 

Tombo das propriedades e bens que pertencem ao esprital desta villa que ora são anexados ahos bens desta santa casa da mysericordia. Começado no anno de 1499 annos

 

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Aqui temos uma evidência de que, no ano de 1499, quando foram tombados os bens e propriedades que pertenciam ao hospital da vila de Barcelos, a Santa Casa da Misericórdia já existia, o que faz recuar um ano à data de 1500, que também era apontada como a da fundação desta instituição. Por isso, celebramos, em 2022, 523 anos de serviço ao próximo e aos mais desprotegidos da sociedade.

Os tombos da Gafaria de Barcelos são excecionais pelos pormenores e pelo facto de terem sobrevivido até aos nossos dias, num conjunto documental compilado no século XVIII com supervisão de Manuel Felgueiras Gayo, então secretário e, logo depois, provedor, desta Casa. Neles podemos encontrar os tipos de cereais semeados/cultivados, o seu rendimento, quem geria estas herdades onde várias vezes é mencionado o nome e a profissão, que tipo de pagamentos deveria efetuar, a localização de todas estas propriedades e seus topónimos, muitos deles hoje desaparecidos.

Em primeiro lugar, colocamos a seguinte questão: O que é uma gafaria?

Era um local, normalmente afastado dos centros urbanos, onde viviam as pessoas que padeciam de lepra. Ana Maria Rodrigues refere que, para aceder a uma gafaria, era necessário ter uma ligação ao concelho onde ela estava sediada, quer por naturalidade quer por ter sido aí que havia sido contraída a doença. Esta restrição no acesso dos leprosos podia ser contornada se o rei desse uma licença.

Estes locais deviam estar munidos de todas as dependências necessárias para a sua autossuficiência para evitar as saídas para o exterior. Assim, na maior parte das gafarias, havia jardins com hortas e pomares, onde se colhiam os legumes e frutos usados na dieta dos leprosos. O poço também era fundamental pois eles não deviam aproximar-se das fontes nem dos poços para não contaminarem as águas. Eram as pessoas sãs que lhes serviam água. Edifícios incluídos nas gafarias: celeiros e adegas, currais e para morada dos gafos e dos sãos.

Em segundo lugar: O que é um tombo?

Um tombo é um inventário autêntico de bens de raiz com as suas demarcações e confrontações, daí a expressão – que outrora se usava e que agora caiu em desuso – que é tombar algo ou alguma coisa, ou seja, inventariar. Por conseguinte, eram instrumentos de gestão e organização de propriedades fundamentais para as instituições que detinham o domínio de um território, muitas vezes distante e disperso.

Indo mais além, estes documentos revelam-nos como se relacionava a misericórdia, nos seus primórdios, com o concelho de Barcelos e suas elites. O tombo de 1464 tem como um dos agentes da sua escrita Cristóvão Afonso, escrivão do concelho da vila. Já o de 1488 informa-nos dos homens bons e vereadores reunidos na câmara em reunião para dar início ao processo de apegação das terras.

O tombo de 1498 dá-nos a conhecer o mercador Pero Vaz e o tabelião público e escudeiro Afonso da Ponte, deixando traçar um pouco do que seria o universo socioprofissional da Vila de Barcelos de finais do século XV.

Por tudo isto, gostaríamos de deixar uma nota acerca da razão de ser e importância de instituições como as gafarias e, sem querermos ser exaustivos, aqui deixamos algumas notas da sua relevância.

Os tombos são, efetivamente, fontes de grande importância para o conhecimento de aspetos da história local, pois permitem-nos obter um conjunto de informações, de caráter social, económico e administrativo, muito relevante que nem sempre se encontram noutro tipo de documentação. No século XVI, consequência manifesta duma política de centralização régia, este tipo de documento teve grande difusão, podendo ser considerado como uma marca reveladora do desenvolvimento e organização das instituições que os promoviam.

As potencialidades dos tombos, como fonte histórica, são diversificadas, como afirma o historiador Cristiano Cardoso, desde logo para a História Rural e da Agricultura, dado que constituem um manancial quase inesgotável de informações sobre o regime de posse e exploração da propriedade e o regime de transmissão do domínio útil, a sua dimensão e parcelamento, as culturas privilegiadas e as que, entretanto, desapareceram, a existência, distribuição, posse e divisão de águas.

Para a Genealogia, os tombos são de importância fundamental para alargar os limites cronológicos impostos pelos registos paroquiais, assim como para complemento e aferição desses mesmos fundos. Podem, muitas vezes, acrescentar dados familiares, sociais, profissionais e psicológicos ao perfil de um indivíduo, atribuindo-lhe cunhos de personalidade.

No âmbito da História do Direito são também importantes, pois tratava-se de instrumentos com valor jurídico, no decorrer do qual eram apresentados e, regularmente, transcritos documentos acessórios como procurações, éditos, cartas de compra e venda, de escambo, de doação, entre outros, em que todos os participantes eram ajuramentados sob os Santos Evangelhos, desde as partes (senhorio e caseiro), até aos apegadores, juiz, quadrilheiro (porteiro ou chamador), testemunhas, homens bons das terras, confrontadores. O documento diplomaticamente obedecia a um protocolo bem definido, cujas regras não podiam ser omissas, nem adiantadas ou antecipadas.

Para a Arqueologia, pela identificação e localização rigorosa de topónimos que fixaram a memória da presença e atividade do homem ao longo dos séculos. Ou, por exemplo, para o estudo da paisagem antiga através da integração e compreensão do sítio arqueológico no complexo paisagístico da época.

D. Manuel I, no decorrer da sua ação de centralização régia e reformas administrativas, funda as misericórdias que agregariam o património dos múltiplos e pequenos organismos de benemerência das vilas. O processo implicou um trabalho de recolha de dados estatutários e patrimoniais, que passou tanto pela compilação da documentação existente, como pela elaboração de novas e sistemáticas séries. Já a Professora Isabel dos Guimarães Sá nos diz que, no norte de Portugal, seria o funcionário régio Diogo Borges a deambular por terras de Barcelos, Braga, Guimarães, Viana e Caminha. Aliás, os nossos tombos também foram redigidos sob a supervisão desta figura.

Deste modo, podemos considerar que os tombos se afirmam, por tudo isto que já invocamos, como repositórios da memória social numa determinada época, que extravasa o domínio da história de apenas uma instituição ou localidade para alcançar o campo da História Nacional, permitindo conhecer de perto aspetos quotidianos da vida humana que o tempo teima em desvanecer.

 

BIBLIOGRAFIA

ROMÃO. Ramiro (2004). A reorganização manuelina da assistência em Barcelos. os casos da gafaria e do hospital do concelho. In CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES. 3 - D. Manuel e o seu tempo: atas. Guimarães: Câmara Municipal.

CARDOSO, Cristiano (2008). O Tombo da Igreja de São Salvador de Lousada de 1532: Estudo e transcrição. In Revista Oppidum,ano 4, número 3, pp. 153-185.

RODRIGUES, Ana Maria (2013). Gafos e gafarias no Portugal medievo. Resumo da intervenção da autoria de Ana Maria Rodrigues, proferida na sessão do NHMOM de dia 23 de fevereiro de 2013. Disponível em: 

https://ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/2017/09/Gafos_e_gafarias_Ana_Maria_Rodrigues.pdf

, Isabel (2004). Introdução [a] Portugaliae Monumenta Misericordiarum. 3. Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, pp.7-21.


SCM Barcelos, 09-06-2022

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