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“E, DO NADA, TUDO MUDOU...”

Viktoriia e Irina estão em Barcelos, fugidas da guerra na Ucrânia. São duas das pessoas ucranianas acolhidas e apoiadas pela Misericórdia de Barcelos. Ao Encontro de Gerações, partilham o seu testemunho, da “oportunidade de esquecer o medo” à integração.

Tinha uma família, um lar, um emprego e um carro. “A minha vida na Ucrânia era fácil, contudo, com a guerra, tornou-se difícil”, sintetiza Viktoriia, de 35 anos, que, com a invasão pela Rússia, teve de deixar tudo para trás. “Tive de fugir, porque vivia numa zona que não era segura. Vivia perto de uma estação nuclear [Zaporizhia] e tive de fugir da minha cidade, a 25 de fevereiro”, explicou ao Encontro de Gerações (EG). Com os pais e uma outra família, deslocou-se, ao longo de três dias, até chegar à Polónia, onde esteve por duas semanas.

Depois, entre a angústia e a esperança, “pensando numa nova vida”, tentou encontrar “um novo sítio, de que gostasse, para fugir da guerra”. “Algo que eu já tinha sonhado há algum tempo, que era viver perto do oceano, para quando estivesse calor, num país com um bom clima e abundante em espaços com natureza... E Portugal é esse país e é por isso que o escolhi entre outros”, contou. Entre pesquisas nas redes sociais e motores de busca, entrou em contacto com uma pessoa em Portugal e, com pouco tempo para decidir – do outro lado do telefone, haviam dito “Tens duas horas!” –, pegou nas suas coisas e ocupou a única vaga que restava para rumar ao nosso país.

Viktoriia foi uma das cinco primeiras pessoas acolhidas, em meados de março, pela Santa Casa da Misericórdia de Barcelos, em resposta ao apelo lançado pela União das Misericórdias Portuguesas, através da “Missão Ucrânia”. “A Santa Casa soube da minha história, da minha profissão, ajudou-me e trouxe-me, com outra família, para Barcelos”, recorda. A instituição apoia Viktoriia ao nível da habitação, apoio alimentar e apoio em produtos de higiene e vestuário.

 

Viktoriia

Viktoriia frequenta a formação em “Português Língua de Acolhimento”

 

Formada em Matemática, Viktoriia trabalhava, há mais de 12 anos, na área do Marketing Digital. “Mas parei de trabalhar, porque a empresa não tem dinheiro para pagar o salário aos seus trabalhadores, uma vez que esta não é uma boa altura para recorrer a publicidades e propagandas”, atenta. Deixar o seu país, a sua vida de então, não foi uma decisão tomada de ânimo leve. Chegou sozinha a Portugal e, no início, “foi muito difícil”. “Durante algum tempo eu vivi sozinha e não falava com ninguém. Tinha de socializar e falar, mas não o fazia, porque não conseguia perceber as pessoas”, recorda. Entretanto, foi estando em contacto com outras duas jovens ucranianas e “começava já a ter pessoas com quem falar e fazer alguma rotina”. Mais tarde, integrou a turma de formação em “Português Língua de Acolhimento”, em que ainda participa. “Ter aulas de Português também me ajudou, porque vou percebendo e aprendendo mais sobre a língua, e possibilitou-me conhecer mais pessoas também. Algumas das minhas colegas de aula têm idades parecidas à minha, bem como os mesmos interesses, o que ajuda a criar uma relação de amizade, para assim poder sair e socializar”, sublinha Viktoriia. “Estou sozinha, mas não estou sozinha. Eu tento encontrar e fazer novos amigos e posso ir a espaços de recreação e visitar novas cidades. Tento sempre ver e conhecer mais sobre Portugal”, acrescenta logo depois.

Viktoriia pensa regressar à Ucrânia, mas não sabe quando. “Talvez não seja possível ainda neste ano, porque acho que a guerra ainda não terá acabado e, mesmo quando chegar ao fim, é difícil voltar para a Ucrânia, uma vez que, o mais certo, além da destruição, é o terreno encontrar-se armadilhado”. Tudo é incerto, nada é definitivo e Viktoriia admite ainda a possibilidade de ficar por território luso: “Se eventualmente gostar de viver neste país, conseguir arranjar trabalho e conseguir sustentar-me, aprender a falar português com este curso e basicamente conseguir encontrar uma nova vida, talvez não queira voltar ao meu país e até fique a viver por cá”.

 

“Apenas precisamos de viver”

 

Que “nem tudo na vida se resume a dinheiro e que nós não precisamos de ter tudo” foi uma das aprendizagens que a guerra trouxe a Viktoriia. “Apenas precisamos de viver, assim como os meus pais também. É importante o simples facto de eu estar viva. A vida é a coisa mais importante que podemos “dar” a outras pessoas”, considera. E se, nos primeiros meses, estava sozinha e se sentia “com medo, preocupação e deprimida”, agora Viktoriia ocupa-se “com outras coisas”. “Quando, por exemplo, estou com colegas e falo sobre os meus problemas, quando conheço novas pessoas (portuguesas) e falamos sobre a minha vida e a vida delas, mantenho-me ativa e sociável e isso ajuda-me a combater esses receios e a sentir-me melhor”.

 

“Tudo pode mudar em segundos”

 

Além de apoio ao nível de alojamento, alimentar e apoio em produtos de higiene e vestuário, a Santa Casa, através do Serviço de Ação Social e Voluntariado, tem atuado igualmente ao nível da integração profissional (cf. infografia). Assim acontece com Irina, de 57 anos, que tem desempenhado funções de ajudante de ação educativa numa das unidades da Misericórdia de Barcelos.

Antes de a invasão russa iniciar, Irina vivia perto da capital ucraniana, Kiev, onde trabalhava na área do Ensino e Educação. Perante a ameaça e o medo da guerra, tem hoje os dois filhos adultos em diferentes partes do continente europeu: a filha foi acolhida na Polónia, o filho não pôde sair da Ucrânia, onde combate, a nora está na Alemanha e “está bem”. “A minha mãe e o meu irmão e a sua esposa encontram-se ainda na Ucrânia”, conta ao EG, para logo depois confessar: “Tenho imenso receio pela minha mãe”.

Na hora de fugir da guerra, “na estação, disseram nomes de vários países e depois mencionaram “Portugal. Quem é o primeiro?”. “E então eu decidi vir…”, conforme conta ao EG.

 

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Irina exerce funções na Misericórdia de Barcelos

 

A língua tem sido uma barreira, mas a aplicação no telemóvel ajuda Irina a comunicar com quem a rodeia e consigo interage. Foi também dessa forma que partilhou ao EG que as impressões de Portugal são “muito boas”. “É um bom país, com pessoas muito amigáveis, que me ajudam muito, muito bonito, com um clima muito parecido com o da Ucrânia”, enumera.

Desde a vinda para Portugal, Irina tem comunicado com a família “por chamada”. “E, quando o faço, digo-lhes para terem calma e dou-lhes forças para superarem o medo que é ainda viver naquele ambiente, onde o alarme de bombardeamento se ouve várias vezes ao dia”, conta. Tal como acontece com Viktoriia, a guerra também trouxe aprendizagens a Irina: “Tens de pensar sempre nos teus entes queridos, de forma a ajudá-los sempre que necessário, aprendendo a ser amigável e prestável, porque tudo pode mudar em segundos. Ainda há meses estava na Ucrânia, com uma boa vida e confortável – tanto em termos pessoais como profissionais – e, do nada, tudo mudou, numa manhã, quando decidiram começar a bombardear e a destruir tudo o que conheces e por que tens carinho e gosto, até ficares sem condições nenhumas para continuar a ter a mesma vida ou sequer uma vida possível”.

Além da emoção e tristeza evidentes no seu discurso, Irina manifesta gratidão às pessoas que a acolheram e que a apoiam: “Foi-me dada a oportunidade de esquecer o medo que senti na Ucrânia, vindo para aqui. Quero agradecer a todos vós”. “É muito difícil lembrar aquele horror e o facto de eu e os meus entes queridos estarmos dentro dele. A minha vida mudou completamente, mas Portugal deu-me, uma vez mais, fé e que tudo vai ficar bem”, finaliza, esperançada.

 

Infografia - Social

Apoio prestado pela SCMB, através do Serviço de Ação Social e Voluntariado, junto de pessoas fugidas da guerra na Ucrânia

 

[Reportagem publicada na edição n.º 54 do boletim institucional "Encontro de Gerações"]


SCM Barcelos, 24-08-2022

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